Pentonville

Pentonville

02/11/2022

 

Ontem, depois de ler a primeira versão do registro que eu havia escrito, Duda me disse que queria saber um pouco mais sobre como tenho percebido subjetivamente os acontecimentos por aqui. Dei-lhe três razões bastante válidas para manter essas percepções um tanto reservadas. Mas, o que ocorreu hoje pede que eu exponha um pouco desses sentimentos.

Cheguei em Londres, após uma noite mal dormida no trajeto realizado de ônibus. Ao menos, tive a sorte de ter como vizinhas de assento duas angolanas, que passaram horas a contar episódios engraçados de suas vidas. (Apresentaram-se, mas não gravei seus nomes.) As duas dormiram ainda quando conversavam e notei que riam enquanto sonhavam. Eram quatro horas da madrugada quando adormeci. Acordei duas horas depois com a melodia alentadora do “azan” (primeiro chamado para a oração) que tocava no celular de um passageiro muçulmano, quando o primeiro filete de sol apareceu no horizonte.

Tomei um café perto da estação, peguei o metrô, tomei outro café no meio do caminho (porque a falta de sono cobrava seu tributo), descobri que o isqueiro não mais funcionava, cheguei no hotel, troquei de roupa no corredor (porque o quarto ainda não estava liberado), deixei a mala num canto que me indicaram, voltei ao metrô, desci na Blackfriars, troquei de linha na City Thameslink, desci em St. Pancras (porque queria curtir um pouco a vista do Regent’s Canal), segui pela Caledonian Road e cheguei em Pentonville.

HMP Pentonville, mais conhecida como “The Ville”, foi inaugurada em 1842 e é a prisão mais antiga da Inglaterra ainda em funcionamento. Tem uma capacidade para um pouco mais de 1.000 prisioneiros e mantém a taxa de ocupação no seu limite máximo. Há quem erroneamente a descreva como uma versão do modelo panóptico; na realidade, Pentonville possui um pavilhão central com alas radiais que são visíveis para quem se coloca no centro do edifício (mas o interior das celas não é visível desse ponto). Se vista de cima, sua arquitetura se assemelha a um asterisco. Nos recentes anos, a Inspetoria de Prisões apresentou uma série de avaliações negativas sobre o estabelecimento, relatando que essa “relíquia vitoriana” ainda sofre com superlotação e más condições estruturais.

Em 2019, eu já havia participado de um projeto muito interessante organizado pelos professores Sacha Darke e José Aguiar, no qual estudantes internos (presos em Pentonville) e estudantes externos (alunos da University of Westminster) se reuniam para fazerem juntos a disciplina de Criminologia. A participação externa, no entanto, foi interrompida com a pandemia e não foi restabelecida.

Quando, hoje, retornei a Pentonville, sua estrutura pesada, com sequências labirínticas de portas e molhos de chaves infinitas, me pareceu ainda mais opressiva. Para agravar essa impressão, havia ocorrido uma mudança na dinâmica de ingresso na prisão. Se em Barlinnie todos deviam ser submetidos a revista eletrônica no ingresso à unidade, aqui a rotina se tornara mais rigorosa: os “prison officers”, aqui incluídos os diretores da unidade, são submetidos a revista pessoal toda vez que ali ingressam.

Após ter passado pelo procedimento de revista, dirigi-me à biblioteca da prisão. Os dois professores me convidaram para acompanhar a aula de um novo curso organizado por eles. A turma é composta por oito presos (nenhum branco) e duas agentes prisionais. Um deles estava ausente em razão de compromisso no tribunal; uma delas também se ausentou – e não me recordo o motivo. Logo no início, enquanto trocávamos apresentações, a aluna-agente me puxou para o lado para uma conversa entre colegas. Passados alguns minutos de intercâmbio sobre as rotinas de cada um, ela elogiou o modelo da roupa tática e o emblema da SUSEPE. A narrativa de uma situação semelhante, contada por um amigo policial (Dias), veio-me imediatamente à mente; destaquei o patch do brasão e lhe entreguei. Ela o pegou como se recebesse uma medalha, ficou muito agradecida, disse que o colocaria em sua mochila e que mandaria foto.

A aula se iniciou com Sacha convidando os alunos para apresentarem as reflexões que eles haviam escrito após a aula anterior (sobre a história das prisões). Um primeiro aluno leu seu texto e fiquei de queixo caído. Um segundo complementou o colega e fiquei ainda mais embasbacado. Um terceiro, guri novo, à minha esquerda, narrou a história da punição em poucos minutos, de forma didática e crítica, como jamais vi qualquer pessoa fazer, citando de Howard a Foucault, com argumentos coerentes e comentários práticos (explicou a justificativa do poder soberano de punir como “This is what happens when you fuck with me”). Mais algumas manifestações se seguiram e me perdi em pensamentos, atônito com a autenticidade e a qualidade daquelas reflexões. Sacha passou então para a matéria do dia, que era uma discussão sobre as “philosophies of punishment” - normalmente traduzido como “finalidades da pena”, mas que prefiro traduzir como “discursos que legitimam a punição”. Explicou brevemente o significado de retribuição, dissuasão, reabilitação e reforma, incapacitação, reparação etc. E nos propôs um exercício: dividiu a turma em três grupos, cada grupo com um caso hipotético, e pediu que sentenciássemos a personagem do caso, fundamentando a punição nas “philosophies” apresentadas.

No meu grupo estavam Daije, Ismael e Jovan. O caso era o de Frank, com 46 anos, que acabara de ser preso por furto a residência; em seu registro, havia 15 condenações anteriores pelo mesmo tipo de crime, com passagens constantes pelo sistema prisional, e constava que ele estava desempregado e morava sozinho. Fiz alguns comentários e deixei que os três elaborassem a proposta de sentença. “Claramente a prisão não funcionou para Frank”, disse Daije. A partir disso, a proposta se estruturou de uma forma inesperada: sentenciaram Frank a monitoramento eletrônico por certo período, com obrigação de reparar o dano às vítimas a partir de descontos razoáveis em seu salário e obrigação de se submeter a terapia cognitiva-comportamental – “porque há algo mais profundo que precisa ser trabalhado e a mera punição não alcança isso”, concluiu Jovan.

Foi aqui que a emoção bateu, Duda. Leciono há uma década, frequentei todos os níveis de instrução, conheci muitas instituições e metodologias, e foi no interior de uma prisão inglesa arcaica que tive a melhor aula de criminologia. Disse-lhes isso. E também os agradeci. Porque, como professor, ao mesmo tempo em que tenho acompanhado trajetórias maravilhosas de alunos, tenho também me envergonhado de ter lecionado para muitos outros que demonstraram recentemente, e muito inspirados pelo momento político, uma sede pela violência e completa ausência de ética. Sem lhes contar isto que registro agora, agradeci-os - pelo fôlego que me deram para prosseguir um pouco mais na docência.

Na saída de Pentonville, tiramos uma foto dos professores reunidos, fumamos um cigarro enquanto caminhávamos até a estação e dali cada um seguiu num sentido diferente.