Em 5 de novembro de 1605, Guy Fawkes foi preso quando fazia guarda dos explosivos que conspiradores haviam deixado sob a Câmara dos Lordes, na intenção de matar o rei James I. Na sequência de sua prisão, o Conselho do rei autorizou que o público celebrasse com fogueiras a sobrevivência à tentativa de assassinato. A partir do século XIX, o dia passou a ser marcado por festejos, efígies queimadas e explosões de fogos de artifício. Nos anos mais recentes, a celebração minguou bastante; há quem atribua isso a um natural desinteresse pelo episódio, ou à maior regulamentação de segurança no uso de fogos de artifício, e há quem argumente que o Dia de Guy Fawkes acabou sendo atropelado pela festa americana do Halloween.
Ainda que essa história não seja conhecida por muitos, a representação de Fawkes se tornou bastante visível. Na década de 1980, Alan Moore e David Lloyd publicaram o famoso quadrinho “V de Vingança”; na narrativa, o protagonista – um revolucionário anarquista chamado “V” – utiliza uma máscara de Guy Fawkes. Os quadrinhos foram adaptados ao cinema em 2005. Nos anos seguintes, a máscara estilizada por Lloyd passou a ser usada nos protestos do grupo hacktivista Anonymous e, desde então, se espalhou por manifestações em todo o globo.
Hoje - “5th of november” -, fomos ao centro de Bath para almoçar e fazer algumas compras. Comemos um boeuf bourguignon num café francês. Passeamos por livrarias. Visitamos inúmeras lojinhas de fudges. Demos uma volta pelas termas romanas – construídas quando a cidade ainda se chamava Aquae Sulis, durante a ocupação romana. Retornamos ao final da tarde na expectativa de vermos os fogos de Guy Fawkes.
Foram poucos no horizonte. Um deles iluminou o céu assim que me conectei à reunião do grupo de estudos. O tema do encontro também se relacionava a uma situação política conflituosa, distinta no tempo e nas motivações: têm ocorrido no Brasil balbúrdias golpistas e surtos coletivos, em razão do resultado das eleições. Ainda que esses atos não tenham estrangulado o processo democrático, eles geraram inquietações – era, portanto, importante que conversássemos sobre isso. Foram três horas de conversa e acolhimento, argumentos diversos e nenhum atrito. Fiz algumas anotações pessoais, que reproduzo a seguir.
O Brasil foi uma colônia de exploração oficial de Portugal por três séculos (e colônia de fato de outros países no período subsequente); por muito tempo, teve sua sociedade e sua economia sustentadas num sistema escravagista; conviveu com genocídios diversos, desde a população nativa até a juventude negra; passou por três golpes militares (um deles foi a própria fundação da república); naturalizou a opressão e a tortura; sempre maltratou negros, mulheres, migrantes e imigrantes. Afirmar que o país se tornou um local violento mais recentemente é ignorar que o país tem uma história de violências que jamais foram resolvidas. Claro que se pode argumentar que o que nos pegou de surpresa foi o fato de esses rancores frenéticos emergirem num período democrático. Mas, ainda aqui, talvez tenhamos mal interpretado o Brasil. Não gosto de me referir à ruptura social como realidades paralelas porque isso tem uma conotação de alienação que é facilmente atribuível de uma parte a outra. Prefiro descrever o país como um espaço de realidades dissonantes, porque isso me permite enxergar grupos sociais com experiências e valores distintos. E então é possível reconhecer que existem grupos sociais que foram engendrados em meio a todas essas violências históricas, que reproduzem discursos autoritários e práticas excludentes, que enaltecem a ignorância, que consideram normal bater, ofender, subjugar. Isso não justifica seus atos - e crimes. Mas, esclarece que esses grupos formam o “establishment” no país, enquanto os grupos sociais que defendem a democracia, que valorizam a racionalidade e a crítica, que pensam em si e também no outro, são a parte “outsider” e estranha dessa confusa equação. Talvez as pessoas próximas - vizinhos, familiares, amigos, professores e alunos -, que tanto nos decepcionaram ou envergonharam, sejam exatamente aquilo que a trajetória histórica do país pode oferecer. Há indivíduos que não gostam da democracia porque não foram instruídos para viver em uma; condicionados por uma cultura que vem sendo transmitida por gerações, elas preferem o autoritarismo – e obviamente o preferem porque também não o experimentaram noutra ponta.
Deixei a reunião com a sugestão de que teremos que estudar e propor um processo de ensino ético para a democracia. Quiçá dê certo e episódios como esses se tornem meros fatos históricos curiosos – como Guy Fawkes se tornou.